“Suspeita” (1941): um Hitchcock irregular

Rafael Serfaty
5 min readFeb 27, 2021

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Todo cinéfilo que se preze conhece Alfred Hitchcock. Apelidado de “Mestre do Suspense”, o diretor criou e fez evoluir o gênero desde os filmes mudos. Das mãos do cineasta, dono de uma capacidade admirável de manipular o espectador e levá-lo ao limite da tensão, surgiram diversos clássicos cultuados pela técnica cinematográfica refinada e inventiva. Em meio a tantos filmes (53, no total), é natural que alguns recebam menor destaque, como Suspeita, primeira obra em que o inglês atuou como diretor e produtor.

Baseado na novela Before the Fact, de Anthony Berkeley, o longa conta a história de Johnny Aysgarth (Cary Grant), charmoso playboy e inveterado jogador que vive pedindo dinheiro emprestado. Ele casa com a tímida Lina McLaidlaw (Joan Fontaine), uma rica herdeira. No entanto, com o tempo a jovem passa a desconfiar que ele seja um assassino, e teme ser a próxima vítima.

Embora seja conhecido pelo suspense, Hitchcock transitava com primazia entre diversos gêneros, desde ação a comédia. Em Suspeita não é diferente, de modo que o longa parece uma comédia romântica na metade inicial, com pitadas de humor negro. Contudo, o relacionamento do casal pode soar pouco crível aos olhos atuais, já que consiste num amor à primeira vista que rapidamente culmina em casamento. Visando contornar essa situação, o inglês acerta em cheio ao escalar Cary Grant e Joan Fontaine para o elenco.

Dotado de um sotaque transatlântico, comportamento afável e timing cômico impecável, Grant incorpora muito bem o perfil de playboy dissimulado — o típico malandro. O ator encarna uma figura elegante e misteriosa, cuja presença magnética torna compreensível porque alguém se apaixonaria por ele. É notório o contraste em seu comportamento, alternando entre uma alegria expansiva e sequências nas quais atesta seu caráter questionável. Seus olhos, por exemplo, eventualmente não possuem um foco bem definido, como se evitasse contato visual — linguagem corporal usualmente associada aos mentirosos. Assim, em nenhum momento fica clara a extensão das mentiras de Johnny, tampouco o quanto este de fato ama a sua esposa.

Por sua vez, Fontaine é ótima encarnando figuras papéis de vítima — no caso, a mulher apaixonada, frágil e desorientada que não sabe como lidar com a suspeita de que o marido seja um assassino. Através de seu olhar perdido, é possível notar a angústia de amar um homem tão perigoso, possivelmente capaz de atos violentos para obter o que deseja. Sua instabilidade emocional também se reflete em ataques de ansiedade e pensamentos negativos, e a composição da atriz é enriquecida por pequenos detalhes, como tremores ao longo do corpo — os quais Lina atribui ao frio.

A química da dupla é a grande responsável por segurar a atenção do público. Não só pelo talento dos intérpretes, mas também por reproduzir um fascinante misto de ingenuidade e malícia. Esse entrelaçamento de personalidades tão antagônicas ameniza o romance simplório da obra, em sua primeira camada: se a narrativa se inicia bruscamente, apresentando um amor platônico irreal, datado e com desenrolar veloz, a segunda metade, por sua vez, focada no suspense, é muito mais interessante do que a primeira — é nela, afinal, que Hitchcock adentra no campo de sua especialidade.

Johnny se envolve em constantes imbróglios, que se amontoam como uma bola de neve. Como assistimos à trama sob a perspectiva de Lina, é desesperador acompanhar as atitudes inconsequentes do marido não só pelo risco em si, mas também porque ela não pode simplesmente largá-lo. Seu amor é verdadeiro, Johnny deu novo sentido à vida de uma mulher outrora solitária. O problema é que não sabemos se este sentimento é de fato recíproco.

Para indicar os trambiques de Johnny, o enredo atira algumas pistas, que vão se desdobrando conforme Lina realiza sua própria investigação. Nesse sentido, os coadjuvantes funcionam como acessórios, fornecendo informações relevantes, mesmo que de modo inconsciente. Beaky (Nigel Bruce), em particular, é peça-chave como cúmplice do marido, adquirindo destaque gradativo desde sua primeira aparição. Inclusive, o amigo do casal serve de veículo para pistas visuais que Hitchcock introduz, e sua inocência aparente fornece uma dinâmica interessante junto à esperteza de Johnny — cujas motivações permanecem incertas até o final da história.

Todos esses elementos só funcionam tão bem pelo preciosismo técnico do cineasta inglês. Roubando características de filmes noir, Hitchcock não hesita em utilizar sombras dramáticas, alto contraste e iluminação low key[1] para intensificar o suspense. Isso, por sua vez, é multiplicado pelo simples fato de ser um romance gótico, já que o foco no feminino sugere uma figura mais vulnerável, com medo e desconfiança da ordem patriarcal.

Explorando interiores sombrios, a belíssima fotografia de Harry Stradling recorre a travellings[2] durante as perambulações de Lina, nas quais Hitchcock cria tensão, também, a partir do silêncio. Além disso, Stradling utiliza técnicas expressionistas de fotografia para indicar o estado conturbado da protagonista, algo reforçado pela eventual presença de câmera subjetiva, com ângulos tortos e imagens perturbadoras. Planos-detalhes em pequenos objetos, como livros e jogos de tabuleiro, são igualmente eficazes em alertar sobre o perigo iminente.

Com tantas qualidades notórias na direção, é lamentável o rumo que o filme toma até seu desfecho. Embora o suspense dos últimos 15 minutos seja escalonado de modo impressionante, as pontas soltas do roteiro se fecham numa resolução deplorável. Não que o plot twist seja ruim, mas este é apresentado com uma exposição pavorosa, que poderia ser substituída por uma ou duas cenas de maior impacto. Soa como algo incompleto e feito às pressas, e fica ainda pior com o ambíguo plano final. Hitchcock, vale ressaltar, foi vítima da covardia dos produtores da RKO Pictures, que pressionaram o cineasta para alterar a conclusão do material base, a qual seria “trágica demais”.

No mais, Suspeita é um exemplar irregular na filmografia do Mestre do Suspense. Embora apresente uma direção formidável, capaz de criar forte tensão e algumas cenas excelentes, o filme é prejudicado por uma primeira metade medíocre e um final repreensível. Não chega a comprometer, mas deixa um gosto amargo após um desenvolvimento tão intrigante. Com maiores liberdades criativas, o resultado poderia ser mais consistente e, quem sabe, memorável.

Texto de 16/12/2020

Notas de rodapé:

[1] A técnica de low key trabalha com pouca iluminação, muita sombra e muito contraste.

[2] No travelling a câmera “viaja”, isto é, desloca-se, na mão do operador, sobre um carrinho, sobre uma grua, em qualquer direção.

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