O novo ciclo do ódio

Após renovar conflito secular, 11 de Setembro se atualiza com novos personagens

Rafael Serfaty
5 min readNov 1, 2021
Foto: Masatomo Kuriya/Corbis
Foto: Masatomo Kuriya/Corbis

Poucas datas possuem tanta força quanto 11 de setembro de 2001. A organização Al-Qaeda sequestrou quatro aviões comerciais americanos na costa leste do país. Dois deles foram lançados contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Outro chocou-se com o Pentágono. Um quarto caiu numa área desabitada no Estado da Pensilvânia. Os atentados resultaram na morte de quase três mil pessoas, e mudaram os rumos do planeta.

Três dias depois dos ataques, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, conseguiu uma autorização do Congresso americano para atacar a Al-Qaeda, o Talibã e suas “forças associadas”, termo amplo o suficiente para englobar qualquer organização que os EUA passassem a classificar como terrorista. Estava iniciada a “guerra ao terror”, com investidas contra o Afeganistão e o Iraque. Os conflitos que resultaram na guerra contra estes países, no entanto, se iniciaram muito antes do 11 de Setembro.

O Oriente Médio era muito mais avançado que a Europa nos séculos XII e XIII. Era o centro do mundo, com primazia em ciência, medicina, química, astronomia e similares. Os muçulmanos olhavam para os europeus como bárbaros. Segundo o professor João Paulo da Silva, graduado em História e mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da UFSCar, é importante salientar isto, porque hoje há uma imagem de que o Oriente Médio é atrasado.

— Houve várias incursões do Ocidente para o Oriente Médio, a começar pelas Cruzadas. Os europeus sempre perdiam as batalhas, mas eles entravam em contato com a tecnologia e a ciência árabe, e foram se apropriando disso. A Europa deu um grande salto econômico a partir da colonização da América. Os europeus só conseguiram navegar graças às técnicas aprendidas com os árabes. O ponto de virada desta trajetória se dá a partir da descoberta da América, e a Europa vai caminhando para se tornar algo que o mundo islâmico já era há muito tempo.

Professor João Paulo da Silva

Começam as incursões vitoriosas da Europa Ocidental para o mundo islâmico, que perde terras conquistadas na península Ibérica, na Rússia e em outros territórios. Ao mesmo tempo, califas mais conservadores tomam o poder e há uma inversão: a partir do Renascimento (século XV) a Europa se torna aquilo que era o Império Islâmico antes, com apreço pelas ciências, pelas artes e pela literatura. No século XX, entra em jogo a questão do petróleo. O Ocidente vê o Oriente Médio com novos interesses e, para Silva, tudo isso ajuda a explicar o 11 de Setembro e suas consequências.

— Essas intervenções do Ocidente no Oriente Médio são constantes. A própria Al-Qaeda é obra dos Estados Unidos. Eles armaram e treinaram esse grupo para expulsar os soviéticos durante a Guerra Fria. O Ocidente entra no Oriente Médio para levar violência, impor valores capitalistas goela abaixo dos caras, e isso gera um sentimento de ‘opa, precisamos contra-atacar’. O resultado hoje é o mesmo que a gente já acompanhava antes: uma negação aos valores ocidentais. Os Estados Unidos tem impedido que o Oriente Médio construa uma agenda mais democrática por rumos próprios. Aí fica esse ciclo de ódio.

Silva alega que a reação americana ao 11 de Setembro deu resultado político para Bush. A curto prazo, o presidente capitalizou em cima do desejo de retaliação do eleitorado médio, mas com o passar dos anos houve desgaste. Para ele, conforme a guerra se estende o resultado eleitoral e econômico vai se perdendo: pessoas estão morrendo por um conflito que não termina, e a economia vai recrudescendo enquanto se mobilizam recursos. Tanto que, segundo o Costs of War, os 20 anos da “guerra ao terror” custaram apenas aos Estados Unidos a soma de oito trilhões de dólares.

Fonte: Costs of War

Paranoia atemporal

Como desdobramento do atentado, uma série de leis aprovadas em prol da “guerra ao terror” reduziu a liberdade e a privacidade de cidadãos nos Estados Unidos, especialmente de estrangeiros. Foram definidos, em todo o mundo, novos mecanismos e protocolos de controle nos aeroportos: revista minuciosa das bagagens, uso de detector de metal, restrição a líquidos na mala de mão. Até 2015, uma lei conhecida como Ato Patriota permitia ao governo interceptar ligações e mensagens telefônicas sem que fosse necessário obter autorização da justiça, por exemplo. Entretanto, não é como se o 11 de Setembro tivesse sido um ponto de virada. Para João Paulo da Silva, os Estados Unidos já agiam de modo similar há muito tempo.

— A própria criação da CIA, dentro do contexto da Guerra Fria, não é recente. Espionavam os americanos, eles tinham lista negra de todo mundo que era taxado de comunista. Historicamente eles sempre foram paranoicos com alguns inimigos, só mudou o alvo. O que nós temos no pós-11 de Setembro são as novas tecnologias. Certamente o atentado se tornou uma desculpa para fazer essa vigilância. Isto aconteceria independente do 11 de Setembro, que talvez tenha acelerado o processo.

O clima de paranoia do governo se estendeu ao povo americano, e os casos de violência civil contra seguidores do Islã dispararam nos Estados Unidos. Segundo a VEJA, as autoridades haviam contabilizado somente 28 incidentes em 2000, número que chegou a 481 em 2001. Desde então, os crimes com motivação islamofóbica permaneceram altos. Em 2019, o FBI contabilizou 219 atos de violência. De acordo com Silva, essa xenofobia se renova constantemente.

— Crise econômica sempre é motivo para paranoia, a população busca um vilão: ‘estou desempregado, quem é o culpado?’ Os muçulmanos foram os inimigos objetivos ideais para o Bush, o governo Obama tentou desconstruir esse cenário, e aí para o governo Trump são os imigrantes. E nisso entram os muçulmanos, os mexicanos, os latinos, os negros. Você tem esse movimento de realocação dos inimigos objetivos, amplia o escopo. A paranoia com arma na mão é a receita para o desastre.

Fonte: FBI

As tragédias decorrentes do atentado e seus desdobramentos, no entanto, ensinaram algumas lições nesses últimos 20 anos de luta contra o terrorismo. Para Silva, o 11 de Setembro é considerado um contra-ataque pelos muçulmanos, e isso mostra que deve haver menos ingerência de uma potência sobre outras regiões, sobretudo as culturalmente diferentes. O professor crê que outras civilizações devem se desenvolver a partir de suas próprias ideias, e que provavelmente não haveria 11 de Setembro sem a presença dos Estados Unidos no Afeganistão. Segundo ele, talvez nossa visão da data mude daqui a alguns anos.

— Para quem não viu ao vivo, talvez essa comoção pela tragédia se perca um pouco. Isso é ruim por um lado, mas é bom por outro, porque se a gente perde um pouco a comoção, é possível fazer análises mais críticas do processo. Talvez surjam novas leituras ao longo do tempo.

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