“Hyouka” (2012): um deleite para fãs de mistério

Rafael Serfaty
9 min readFeb 27, 2021

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O ser humano é curioso por natureza. Desde os primórdios, somos instigados por tudo cuja causa é desconhecida, buscando entender o inexplicável. Assim, é natural que o mistério seja tão popular no meio literário e cinematográfico, rendendo diversos clássicos. Estes, por sua vez, constantemente envolvem crimes terríveis, investigações mirabolantes e uma ameaça pendente. Mas e se fosse possível encarar um bom mistério de modo mais “tranquilo”? Sem precisar roer as unhas acerca do destino dos personagens? É aí que entra Hyouka — série de anime produzida pela Kyoto Animation.

Composta por 22 episódios, a série adapta os primeiros quatro volumes da light novel Clube de Literatura Clássica (古典部 Koten-bu), escrita por Honobu Yonezawa. A história gira em torno de Houtarou Oreki, um garoto do ensino médio que sempre age de forma passiva. Este, a pedido de sua irmã mais velha, se junta ao Clube de Literatura Clássica para impedi-lo de ser fechado, junto com Eru Chitanda, Satoshi Fukube e Mayaka Ibara. Nele, o protagonista e os demais membros começam a investigar um caso que ocorreu há 45 anos. As dicas deste mistério se encontram em uma obra intitulada Hyouka, feita através de dados coletados por ex-membros do clube. Assim, o grupo de amigos passa a resolver casos misteriosos que ocorrem dentro e fora da escola.

Um quarteto único

Em sentido horário, partindo do canto superior esquerdo: Houtarou Oreki, Satoshi Fukube, Mayaka Ibara e Eru Chitanda

Empatia é fundamental em qualquer obra audiovisual. Sem ela, pouco importa os dilemas e desafios alheios. É algo tão importante quanto a própria história, tendo relação direta com o desenvolvimento dos personagens. Tanto que o guru dos roteiros, Robert McKee, escreveu em seu clássico Story: “Não podemos perguntar qual é mais importante, estrutura ou personagem, porque estrutura é personagem. Eles são a mesma coisa, e por isso um não pode ser mais importante que o outro.”. Felizmente, o quarteto de Hyouka é fascinante.

Houtarou Oreki é o nosso protagonista: calmo, descontraído e preguiçoso. Isso se reflete em sua expressão cansada e cabelo bagunçado. A razão de sua apatia? Conforme diz o próprio: “Se eu não tiver fazer isso, eu não vou. Se eu tiver que fazer, eu farei isso rápido.” Despreocupado com as coisas que acontecem ao seu redor, gosta de se manter no “lado cinza” da vida. Contudo, é bastante inteligente e perceptivo, parecendo sempre encontrar uma solução se pensar nisso.

Contrapondo o eterno tédio de Oreki, há seu melhor amigo: Satoshi Fukube. Alegre e ativo, sabe de muitas coisas, embora triviais. A dupla também é acompanhada de Mayaka Ibara, que possui velho interesse por Satoshi. Franca e direta, é severa com os outros e com ela mesma. Sem perder tempo com longas introduções, a série assume que o trio se conhece há anos. Porém, estes só têm suas vidas de fato mudadas quando Houtarou decide ingressar no Clube de Literatura Clássica. E isso nos leva ao último membro: Eru Chitanda.

Chitanda é uma pessoa calma e feliz, mas pode ficar muito animada quando coisas novas ou interessantes acontecem. Essa imensa curiosidade serve de motor para as aventuras do clube, cujos membros rapidamente constroem uma amizade com a garota.

Assim, temos quatro estudantes de personalidades distintas, mas que se completam muito bem. Chitanda, por exemplo, é quem induz Oreki a resolver os mistérios, tirando-o de sua apatia habitual. Este, por sua vez, demonstra um exímio talento para resolvê-los, sendo auxiliado por Satoshi — autodenominado “banco de dados” — e Mayaka, que questiona suas deduções. Ou seja, por mais que nenhum dos integrantes do clube (exceto Houtarou) possua uma caracterização detalhada, a princípio, o conjunto é formidável, evoluindo no decorrer da trama e rendendo grandes interações. Não por acaso, a resolução dos mistérios se torna ainda mais divertida.

Do simples ao complexo

É no mínimo curiosa a ideia de, em pleno ambiente escolar, adolescentes resolverem casos misteriosos. Ainda mais quando o gênero “mistério” normalmente é associado a produções com crimes, suspense e derivados. Como tornar interessante sem que a vida dos personagens corra perigo? Mesmo com elementos de slice of life, Hyouka consegue ultrapassar essa barreira com maestria.

É incrível como a série consegue pegar algo simples e escalonar para um resultado grandioso. São situações cotidianas, mas que instigam conforme os personagens vão descobrindo novas informações e aprimorando suas teorias. Digamos que, por exemplo, um livro tenha sumido de uma estante. Houtarou, com bastante sutileza, poderia descobrir o que aconteceu. Para tal, reuniria o máximo de informações possíveis a ponto de construir um raciocínio lógico. Em nenhum momento soa como se ele tirasse deduções avulsas da cabeça, pelo contrário, Oreki elabora respostas críveis com justificativas brilhantes. E é deveras satisfatório acompanhar como ele chegou em determinada conclusão.

Além disso, a direção de Takemoto Yasuhiro é excelente para ilustrar os mistérios ao espectador. Ora, por melhores que fossem os diálogos, se resumir ao básico plano e contra-plano descambaria rapidamente para a monotonia. O diretor foge disso ao explorar os múltiplos recursos da animação para que obtenhamos total entendimento. Muitas vezes, há alegorias visuais de determinada tese, junto ao voice-over do personagem — ou seja, este explica seu ponto enquanto vemos a teoria. E esse cuidado com verossimilhança e clareza também se encontra no próprio formato da série.

Na condição de produto televisivo, o anime poderia incorrer no erro de apresentar meros “casos da semana”. Isso tornaria a dinâmica repetitiva e, portanto, tediosa. Contudo, a estrutura adotada é bastante coesa, tanto que nos deparamos com pelo menos três grandes arcos. Desse modo, os mistérios se desenrolam gradativamente, aguçando a nossa curiosidade. Há sim eventos de episódio único, porém estes servem de respiro para desenvolver a relação do quarteto, fornecendo um equilíbrio fundamental à narrativa. E sobra até espaço para referenciar Sherlock Holmes e Agatha Christie.

O detetive em negação

Para muitos, o Ensino Médio é o momento decisivo e o ponto alto de suas vidas; um tempo cheio de introspecção e mudança, onde alguns sonhos terminam e outros nascem para ocupar seu lugar. Por outro lado, há alguns que rejeitam essa noção e optam por passar seus dias rotineiramente, nunca se afastando muito de sua zona de conforto e estilo de vida estabelecido. Afinal, por que desperdiçar energia com questões triviais? Houtarou Oreki é um desses indivíduos.

Quando ele integra o Clube de Literatura Clássica de sua escola, este o faz por obrigação, não por escolha. Para um indivíduo que não se interessa por estudar, praticar esportes e socializar, isso pode ser uma provação árdua e dolorosa. Em meio a isso, descobre um enorme talento para resolver mistérios… Que reprime. Mesmo com capacidade analítica e dedutiva extraordinárias, este não se dá o devido valor. A partir disso, pode-se concluir que o garoto sofre de um mal que acomete milhões de pessoas: a depressão.

Embora nenhum personagem seja (oficialmente) diagnosticado na série, Oreki apresenta diversos indícios de sofrer com a doença. Afinal, ele é apático e com um cansaço excessivo. Parece não ser capaz de sentir prazer ou alegria. Mais do que isso, há uma potente autodepreciação de sua parte, o que se traduz em atribuir seus feitos à sorte. Ou seja, nega a sua própria existência.

De fato, Oreki poderia muito bem ter mantido seu status quo de viver aborrecida e livremente, se não fosse por uma certa garota que se juntou imediatamente ao clube. Chitanda é essa força mutante, servindo de contraste para o comportamento do protagonista. Num primeiro momento, é quase como uma intrusa em seu habitat natural. Porém, se mostra de suma importância.

Aos poucos, Oreki passa a se tornar mais ativo, saindo de sua zona de conforto. Sua vida, outrora cinzenta, vai ganhando cores conforme se aproxima da garota. Esta amolece sua carcaça de frieza com uma energia acolhedora. E, por mais que não pareça, Houtarou tem um bom coração e se importa bastante com os seus amigos. Mais de uma vez, fere o seu lema de “economizar energia” para ajudá-los. Isso passa diretamente por Chitanda, que, através de sua icônica frase de efeito (“Não consigo parar de pensar nisso!”), lhe dá outro sentido à vida.

Ademais, é interessante notar como a depressão também envolve redução do interesse sexual. Portanto, é sintomático que Oreki sinta atração por Chitanda. E sua reação ao “descobrir” essa novidade é, além de divertida, mais um elemento que desenvolve o personagem. Isso tudo sem precisar de um romance de fato — a mera sugestão, recíproca, já passa o recado.

Kyoto Animation faz a diferença

Chitanda cativando Oreki pela primeira vez, em cena do episódio de estreia

A indústria japonesa é gigantesca: cerca de 60% das animações do mundo são compostas por animes. Não por acaso, a cada ano são produzidas mais de 200 séries voltadas para a TV, DVD e cinema na Terra do Sol Nascente. Ainda, segundo dados da AJA (Associação Japonesa de Animação), em 2018, os animes movimentaram cerca de 2 trilhões de ienes apenas no Japão. Utilizando a cotação iene-real do dia da elaboração deste artigo, esse montante equivale a cerca de R$ 107,25 bilhões.

Para suprir essa demanda assustadora, trabalha-se em condições análogas à escravidão. Existem relatos de animadores que trabalham 35 horas seguidas, sem nenhum descanso. Além disso, há uma constante troca de funcionários conforme os estúdios crescem[1], e isso em muito se dá pelos péssimos salários oferecidos[2]. E é nessa conjuntura que a Kyoto Animation se destaca.

Ao contrário de seus concorrentes, a KyoAni (como é conhecida por fãs) emprega animadores próprios e assalariados ao invés de freelancers[3]. Desse modo, o estúdio concentra-se na qualidade do projeto a ser entregue, ao invés do tempo de produção. Fornecem condições decentes para os funcionários, que também não realizam horas extras. Portanto, é natural que isso se traduza positivamente em suas produções, como podemos observar em Hyouka.

Trecho do segundo tema de encerramento: “Kimi ni Matsuwaru Mystery” (君にまつわるミステリー O Mistério Em Torno de Você)

A apresentação da série é um de seus aspectos mais marcantes. O clima e a atmosfera são definidos pela iluminação proeminente e pelos eventos e monólogos, que são fortemente estilísticos e às vezes até abstratos — levando o espectador para um lugar muito mais surreal. Algumas cenas também flertam com o onírico, vide o primeiro momento que Chitanda consegue cativar Oreki. Esse tipo de dicotomia entre o normal e o abstrato é o que torna Hyouka uma experiência única.

A KyoAni também apresenta um trabalho magnífico na animação e nos designs subjacentes. Os movimentos realistas são louváveis, porém o que mais se destaca é o foco nos olhos e nas expressões faciais: os personagens de Hyouka estão entre os mais visualmente expressivos vistos em um anime. Igualmente eficaz é a trilha sonora, a qual cria uma sensação inerente de intriga sem jamais soar deslocada. Assim, o estúdio atinge um nível de qualidade artística fantástico, que se mantém regular durante os 22 episódios.

Considerações finais

No Japão, anime se refere a qualquer animação, não importa o país. Lá, é extremamente comum assistir a obras animadas, até mesmo entre pessoas mais velhas. E é uma pena que, no Brasil, ainda exista tamanha resistência a esse formato — reduzido a conteúdo infantil. Naturalmente, há diversas produções medíocres, até pela demanda elevada, porém não há, no mundo, nenhuma indústria mais capacitada no ramo que a japonesa. Na condição de espectadores, nos resta garimpar o que eles têm a nos oferecer de melhor, e Hyouka é um dos exemplos perfeitos disso.

Aqui, a Kyoto Animation prova que é possível, com o devido zelo, extrair do mundano entretenimento de alta qualidade. Para além dos mistérios, também funciona como um fabuloso estudo de personagem. Oreki é a representação das angústias adolescentes, esbanjando carisma junto a um trio encantador.

Texto de 04/09/2020

Notas de rodapé:

[1] Os contratados que ganham maior destaque e têm mais experiência recebem vários convites para trabalhar em grandes estúdios e, por conta disso, a maioria se torna freelancer.

[2] Os jovens entre 20 e 24 anos possuem salário anual médio de 1.550.000 ienes (R$77.639,75). Isso é 1 milhão de ienes menor que a média nacional para a mesma faixa etária, de acordo com dados da Agência Nacional de Impostos.

[3] Contratados por um certo período de tempo para trabalhar em um projeto específico, recebendo a cada quadro de animação que produzem.

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