As faces do quarto

Rafael Serfaty
8 min readMay 24, 2021

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Imagem: Freepik

O presente texto, originalmente, era para a G1 de Comunicação e Literatura Brasileira — matéria de Comunicação Social na PUC-Rio. Como a nota da avaliação já foi dada, achei válido publicar o trabalho aqui. Dito isto, boa leitura!

PROJETO INTERVENÇÕES REMOTO

“É um trabalho de criação em dupla, de matriz prática, que explora uma relação simbólica do espaço físico com algum objeto teórico do curso de Comunicação e Literatura. No caso, o espaço, na versão remota do projeto, deve ser algum cômodo da casa do/a aluno/a. A ideia do projeto é a possibilidade de transformar o contexto — caseiro, pessoal, familiar, privado, íntimo — em narrativas que dialoguem com os conteúdos do curso e reflitam sobre o universo subjetivo doméstico. É um projeto em primeira pessoa, que valoriza a dimensão emocional e afetiva do autobiográfico.” — Professor Sergio Mota

Autores do Projeto: Nathália Bromberg e Rafael Serfaty

Objeto teórico: “Mundo Grande”, poema de Carlos Drummond de Andrade.

Cômodo da casa: Quarto, com enfoque na cama.

Durante todo esse período de isolamento social, que se arrasta e parece nunca chegar ao fim, meu dia a dia e o de diversas outras pessoas virou do avesso. Eu já nem me reconheço mais. Tantas atividades que antes eram realizadas em ambientes externos à nossa casa, e ofereciam mais dinamismo para as nossas vidas, de repente foram enclausuradas dentro desse ambiente que tanto já acumulava. Com isso, quero dizer que a minha casa já trazia com ela, o momento do descanso, do lazer, o lugar seguro para vivenciar minhas angústias, o abrigo para tantos desentendimentos familiares e o desejo mais desejado ao fim de todos os dias triviais.

De uma hora pra outra, esse espaço, em especial o meu quarto, além de todas as funções que já acumulava, passou a ser a minha sala de aula da faculdade, o escritório em que trabalhava, o espaço para atividades físicas e o local em que eu mais interagia com outras pessoas, mesmo que virtualmente. E então, como parte de um processo bastante doloroso, eu comecei a ressentir o meu próprio quarto. A revolta generalizada com a situação inquietante que eu estava vivendo começou a causar danos em mim.

Eu estava triste e bastante deprimida e, após uma quantidade considerável de análise, percebi que sentia falta da minha vida caótica anterior à pandemia, que era tão marcada por todo um estresse diferente e uma presença exagerada de caos urbano e problemas familiares e emocionais, com os quais, de certa forma, eu já estava habituada a lidar. Mas esses novos sentimentos que estavam chegando eram algo novo, que eu não tinha a menor ideia de como explicar.

É um sentimento de dissociação comigo mesma e da minha rotina atual. Isto é o que gerou uma espécie de identificação com o eu lírico do poema “Mundo Grande”. Alguém que se encontra perdido, sem saber lidar com o mundo que agora está dentro das quatro paredes do meu próprio quarto. “Não, meu coração não é maior que o mundo / É muito menor / Nele não cabem nem as minhas dores”.

Traço um paralelo entre a forma como, a cada dia que passava, meu quarto se deteriorava mais e mais devido às minhas ações, porque eu estava descontando nele a minha frustração de perceber como não me reconheço, me sinto pequena, frágil, uma estranha para mim mesma. Sou impotente dentro desse pequeno espaço. “Sim, meu coração é muito pequeno / Só agora vejo que nele não cabem os homens”.

Aos poucos minha mesa de estudos foi se tornando um depósito de papéis que deveriam estar no lixo, além de diversos objetos que eu sentia preguiça e não me importava de colocar em seus devidos lugares. Os sapatos empilhados na sapateira estavam cada vez mais empoeirados e eu não os organizava; a mesinha de cabeceira estava completamente suja e atolada de copos. E o pior é que eu mal consigo me lembrar de ter usado sequer um deles. Minhas duas plantas, que em suas melhores formas trariam um visual mais agradável para o quarto, encontravam-se em um estado deplorável, murchas e sem vida.

Por fim, a parte que provavelmente mais sofreu foi a minha cama, que por muito tempo me via levantar todos os dias e arrumá-la, de repente se tornou a maior vítima do meu novo estado de espírito. Já não me importava de simplesmente levantar e largar a cama de qualquer forma. Que coisa mais estranha. Logo eu, que tinha tanta vaidade com a decoração da minha cama. Era ela que, com suas diversas colchas, determinava o tom no meu quarto. Era o meu aspecto favorito de decoração, mas “Tu sabes como é grande o mundo / Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão / Viste as diferentes cores dos homens / as diferentes dores dos homens / sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso / num só peito de homem… sem que ele estale”. Sem poder lidar com tanta coisa, tive que transferir muito para minha cama, afinal era o peito e o coração do meu quarto.

Cada vez que eu entrava naquele ambiente, me sentia muito incomodada com aquela cama desorganizada, que me encarava logo de cara, como se estivesse constantemente me lembrando de todo meu desleixo. E eu simplesmente não sabia explicar por que sempre me deixava vencer pela preguiça e não a arrumava. Era como se eu mesma, de alguma forma, estivesse debochando de mim todas as vezes que olhava para o quarto completamente desorganizado, mas que só precisava de cuidados simples, que eu me recusava a fazer, enquanto me permitia afundar cada vez mais. “Meu coração não sabe / Estúpido, ridículo e frágil é meu coração / Só agora descubro / como é triste ignorar certas coisas”.

Junto a isso, somava-se o fato de que eu estava passando mais e mais tempo sem sair da cama. Deixei de me levantar e de fato sentar à mesa para estudar e trabalhar. Preferia fazer tudo apenas deitada. O que era como o último estágio de decadência e perseguição que a minha própria cama poderia me impor. “Outrora escutei os anjos / as sonatas, os poemas, as confissões patéticas / Nunca escutei voz de gente / Em verdade sou muito pobre”.

Após chegar nesse ponto, eu tinha que encarar a minha realidade, lidar com toda essa quantidade estranha de coisas que eu estava sentindo. E acredite, estava tudo estranho demais. Mas que preguiça de pensar em tantas coisas agora, tudo me deixa com tanto sono, que parece melhor ceder, só mais um dia, ao perturbador conforto da minha cama.

Outrora viajei / países imaginários, fáceis de habitar / ilhas sem problemas, não obstante exaustivas / e convocando ao suicídio”.

Eu não aguento mais. Não sei há quanto tempo essa loucura começou, mas já estou no meu limite. Até já esqueci quem sou de verdade… Opa, você deve estar boiando, né? Permita-me explicar, caro leitor: sabe-se lá como, minha consciência passou a ser compartilhada por dois corpos. Dia sim, acordo na figura que você estava acompanhando agora há pouco. Dia não, acordo nesse semblante infeliz e amargurado aqui. Desconfio que seja uma entidade querendo se divertir às minhas custas. Não que a colega de lá seja muito melhor, afinal, a pandemia lhe afetou de modo a esse infortúnio dos corpos sequer ter sido notado. Virou problema secundário.

Essa questão toda é bastante curiosa. Por um lado, sou muito azarado de, dentre sete bilhões de pessoas, ter sido uma das pobres almas escolhidas para lidar com essa loucura. Por outro, podia ser pior: isso poderia ter ocorrido sem ser durante a pandemia. Não me leve a mal, claro que em condições normais eu não torceria pela morte de ninguém às custas desse maldito vírus, mas agora eu tenho a desculpa perfeita para não sair de casa. Imaginem a vergonha da “colega de mente” assumir o meu corpo e interagir com conhecidos meus?

A entidade que me enfiou nessa patifaria parece odiar comunicadores. Ora, tanto eu como a colega cursamos Comunicação Social! Pelo menos isso facilita na hora de estudar, e meu quarto, mais do que nunca, se tornou o local para tal. A praticidade da quarentena é fascinante: tirando o banheiro e a cozinha, tudo que faço ao longo do dia passa pelo meu quarto. E não posso deixar de agradecer a PUC-Rio pelo Moodle, já que não preciso mais adentrar os confins da universidade para imprimir textos.

No entanto, estudar pelo computador tem suas desvantagens. É terrivelmente fácil sair da tela de estudo e entrar rápido numa rede social. “É só um minutinho”, pensa o ingênuo aluno, até que isso vira cinco, dez, vinte, trinta… Difícil focar para quem é dispersivo, ainda mais com todos os atrativos do quarto. Descobri que me tornei íntimo da minha cama, por exemplo. Há lugar melhor para cochilar nos intervalos entre as aulas? Em condições normais não havia esse privilégio.

Mas a verdade é que esse é um cenário fabricado. Nossa vida normal foi sequestrada pelo coronavírus, por aqueles que deveriam combatê-lo, mas não o fazem e, no meu caso e no da minha colega, pela entidade que está rindo enquanto trocamos de corpos que nem patetas. Para não enlouquecer, o jeito é buscar os pequenos prazeres espalhados nessa dura realidade. É difícil, mas se cavucar direitinho dá para encontrar.

Eu queria poder desapegar e ficar mais tempo fora do quarto. Ele é cômodo, e a cama bem quentinha e aconchegante, mas sinto falta de sair ao ar livre sem medo de contaminação. Ver gente, dar abraços, rir, aglomerar e daí em diante. Claro, eu poderia simplesmente ser irresponsável e fingir que nada disso está acontecendo, só que prezo pela minha vida e pela da minha colega. Se eu morrer, é capaz da entidade nos penalizar. Imagina só, duas consciências se digladiando pelo controle do mísero corpo que sobrou? Dispenso mais um estresse.

Inevitavelmente, há dias que me identifico com o poema “Mundo Grande”, de Carlos Drummond de Andrade. Há um universo vasto lá fora, mas acabei concentrando tudo dentro de uma partícula dele. Assim, me canso desse mundo minúsculo, e o que antes era refúgio se torna prisão. A minha cabeça está tão bagunçada que, durante esse relato mesmo, eu comecei a escrever irritado, depois fui me acalmando e lembrando de algumas coisas boas… até lembrar de como tudo isso é uma desgraça. Bem que essa entidade podia ser útil e vacinar todo mundo, né? Mais proveitoso que mexer com duas almas miseráveis numa sociedade doente. Por ora, me resta deitar na cama, me posicionar de modo confortável e esperar pelo amanhã. Um dia o quarto muda de significado. Espero.

*A primeira personalidade foi concebida por Nathália Bromberg; a segunda por Rafael Serfaty. Ambos realizaram a edição final.

[Texto de 12/05/2021]

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